setembro 15

O que é libertário para você? (por Hugo Scabello)

Contribuição escrita para o 2° encontro do grupo

https://hugoscabello.milharal.org/as-liberdades-negadas/textos/libertario-verbete/

 

Escrevi esta nota sobre o debate do que é libertário por demanda do segundo encontro do grupo de estudos libertários organizado no segundo semestre de 2013 na USP campus Butantã.

 

Libertário: adj. e s.m. Termo utilizado para se referenciar a discursos e práticas que se opõem a qualquer forma de dominação.

Esta definição é obviamente insuficiente, pois a partir dela é possível afirmar que o pensamento de Lao-Tsé e a prática do mito Jesus Cristo seriam libertárias, assim como os de Malatesta, Thoreau, Bakunin, Foucault etc. Ou seja, ela é tão demasiadamente genérica que acaba por colocar na mesma caixa pensamentos e práticas de épocas e impérios extremamente longínquos, alem de muitas vezes radicalmente contraditórios – como Makhno e Hakim Bey pra me conter num só exemplo.

Afim de melhor definir o que é libertário parece-me saudável primeiro demarcarmos um território e uma época, para, em seguida discutir melhor o que seria “dominação”, e assim refinar a compreensão do conceito em questão.

Já que vivemos sobre a Dinastia e o Império da Modernidade, entendo que devemos pensar “o que é libertário” ancorados nas fronteiras espaciais e temporais desta época – a menos que nosso interesse seja estudar o que era libertário dentro do paradigma da Antiguidade chinesa, ou dentro das epopeicas páginas da Bíblia (já que esta é a única fonte que cita de fato o tal Salvador). Um estudo deste tipo – além do esforço muito além das nossas possibilidades que ele exigiria – não me parece muito relevante ou útil para nos opormos hoje e aqui a qualquer forma de dominação…

Todavia, mesmo com este corte em mãos, excessivas divergências ainda existem entre os muitos discursos e práticas que pretendem combater toda e qualquer forma de dominação dentro da modernidade. Despretensiosamente, inexaustivamente e grosseiramente gostaria de elencar três grupos de práticas-discursos libertários contemporâneos, diferenciados a partir do pilar principal de cada um – a saber, o individualismo, o socialismo racionalista e o socialismo niilista. Insisto em falar de discursos e práticas libertárias, não de indivíduos libertários, tanto para evitar me posicionar já a priori dentro da perspectiva individualista, quanto por entender que o indivíduo moderno coerente, estável, racional, monolítico (etc.) é uma falácia, e, assim sendo, um mesmo indivíduo pode desenvolver (e normalmente o faz) discursos e práticas ora individualistas, ora socialistas, ora niilistas.

 _ Individualismo. Dentro deste grupo se encaixam discursos e práticas que defendem a liberdade individual contra os poderes hegemônicos da modernidade, ou mesmo contra qualquer coisa “externa” ao tal individuo. Ou seja, para os individualistas, libertário é um indivíduo que luta para ser livre de qualquer imposição à sua soberana vontade. A liberdade é, então, uma característica individual e negativa – não estamos falando aqui da liberdade de poder fazer, mas sim da liberdade de não fazer parte e não compactuar com a sociedade atual. É possível delimitar subgrupos dentro deste, para citar tão somente alguns: anarco-capitalismo, primitivismo, autonomismo, anarco-individualismo. Os discursos de Stirner e as práticas autonomistas parecem-me os exemplos mais caricaturais desta linha. Entretanto, é possível encontrar elementos individualistas em muitos e diferentes discursos, até mesmo em autores que majoritariamente não se baseiam na defesa da soberania individual – como por exemplo Kropotkin;

 _ Socialismo racionalista. Um segundo grupo que gostaria de rascunhar é aquele que possuí como ponto comum a ideia de que a partir duma organização racional das instituições sociais é possível se chegar numa situação de igualdade e liberdade em que não haja dominação tampouco opressão individual ou coletiva. Dentro deste grupo é possível incluir até mesmo muitos marxistas – já que estes acreditam que depois do processo “educativo” da ditadura do proletário chegaremos a uma sociedade comunista, uma sociedade de liberdade e igualdade plena – contudo, esta inclusão parece-me ligeiramente indevida se levarmos ao pé da letra a ideia de libertário como a oposição a qualquer forma de dominação, pois a dominação está explicitamente presente no tal “período de transição” da ditadura proletária.

Por ter como base a ideia moderna de Razão, é comum para os socialistas racionalistas se utilizarem em seus discursos de conceitos como consciência e alienação a fim de se referenciar a quem possuí ou não uma visão racional da sua situação na atual sociedade. Compreende-se então o motivo deste grupo tanto valorizar a questão da pedagogia libertária – para se atingir a sociedade racional libertária é imprescindível que os indivíduos estejam conscientes das verdadeiras verdades sociais. A liberdade, então, é uma espécie de conformação social às leis racionais cientificamente extraídas.

É possível encaixar neste grupo – com mais ou menos forçação de barra – praticamente todos os discursos socialistas utópicos, boa parte dos discursos anarquistas cientificistas, assim como dos marxistas libertários e heterodoxos.

_ Socialismo niilista. O último grupo – mas não o menos importante, a menos a meu ver – é aquele que tenta fugir tanto da divinização do indivíduo (cometida pelos individualistas), quanto da divinização da Razão (cometida pelos racionalistas), ou mesmo de qualquer outra divinização. Enquanto os outros projetos libertários se baseiam em aspectos centrais da Modernidade (como o Homem Racional e Autônomo, ou a Razão), a base dos discursos e práticas niilistas é aquilo que chamo de leveza[1], que pode ser entendida de maneira mais simples como o esforço para não (re)criar verdades absolutas, a fim de evitar o erro de organizar projetos reapropriativos. Dentro da perspectiva niilista, toda verdade suprema e universal demanda e acarreta a organização duma hierarquia para garanti-la, ou seja, o projeto libertário ou é leve ou é contraditório com seus próprios objetivos. Somente aceitando a consumação do niilismo (a desvalorização dos valores supremos) como única possibilidade, é que se faz possível o desenvolvimento exclusivo de relações horizontais e simétricas de poder. Para o niilismo a revolução socialista é uma generalização de verdades fracas, não a universalização duma verdade absoluta, e a liberdade é tão somente o fomentar de relações horizontais. A autogestão é a práxis do anarco-niilismo.

Um projeto racionalista, por exemplo, demanda uma hierarquia científica acadêmica que determine o que é mais e o que é menos racional – minando então a possibilidade duma sociedade racional sem dominação em suas próprias bases. De certo modo, Bakunin previra este perigo ao dizer que uma hipotética sociedade governada por cientistas seria uma “monstruosidade”. É sem dúvidas este anarquista o que mais desenvolveu discursos e práticas que podem ser caracterizados como niilistas. Além dele, podemos citar outros pensadores mais contemporâneos como Foucault e Delleuze
Hugo Scabello na gloriosa Santos. Setembro de 2013.


[1] Tento apresentar o conceito de leveza num texto meu já publicado de nome: “Individualismo, “Pós-modernidade” e Anarquismo”. Todavia, retomo este debate de maneira mais aprofundada num texto ainda inédito “A Pós-moderna Revolução Socialista”

 

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setembro 7

A Delinquência Acadêmica, de Maurício Tragtenberg

A Delinquência Acadêmica

por Maurício Tragtenberg*

Texto em PDF: http://jornaldoporao.files.wordpress.com/2009/11/a-delinquencia-academica-mauricio-tragtenberg.pdf

O tema é amplo: a relação entre a dominação e o saber, a relação entre o intelectual e a universidade como instituição dominante ligada à dominação, a universidade antipovo.

A universidade está em crise. Isto ocorre porque a sociedade está em crise; através da crise da universidade é que os jovens funcionam detectando as contradições profundas do social, refletidas na universidade. A universidade não é algo tão essencial como a linguagem; ela é simplesmente uma instituição dominante ligada à dominação. Não é uma instituição neutra; é uma instituição de classe, onde as contradições de classe aparecem. Para obscurecer esses fatores ela desenvolve uma ideologia do saber neutro, científico, a neutralidade cultural e o mito de um saber “objetivo”, acima das contradições sociais.

No século passado, período do capitalismo liberal, ela procurava formar um tipo de “homem” que se caracterizava por um comportamento autônomo, exigido por suas funções sociais: era a universidade liberal humanista e mandarinesca. Hoje, ela forma a mão-de-obra destinada a manter nas fábricas o despotismo do capital; nos institutos de pesquisa, cria aqueles que deformam os dados econômicos em detrimento dos assalariados; nas suas escolas de direito forma os aplicadores da legislação de exceção; nas escolas de medicina, aqueles que irão convertê-la numa medicina do capital ou utilizá-la repressivamente contra os deserdados do sistema. Em suma, trata-se de “um complô de belas almas” recheadas de títulos acadêmicos, de um doutorismo substituindo o bacharelismo, de uma nova pedantocracia, da produção de um saber a serviço do poder, seja ele de que espécie for.

Na instância das faculdades de educação, forma-se o planejador tecnocrata a quem importa discutir os meios sem discutir os fins da educação, confeccionar reformas estruturais que na realidade são verdadeiras “restaurações”. Formando o professor-policial, aquele que supervaloriza o sistema de exames, a avaliação rígida do aluno, o conformismo ante o saber professoral. A pretensa criação do conhecimento é substituída pelo controle sobre o parco conhecimento produzido pelas nossas universidades, o controle do meio transforma-se em fim, e o “campus” universitário cada vez mais parece um universo concentracionário que reúne aqueles que se originam da classe alta e média, enquanto professores, e os alunos da mesma extração social, como “herdeiros” potenciais do poder através de um saber minguado, atestado por um diploma.

A universidade classista se mantém através do poder exercido pela seleção dos estudantes e pelos mecanismos de nomeação de professores. Na universidade mandarinal do século passado o professor cumpria a função de “cão de guarda” do sistema: produtor e reprodutor da ideologia dominante, chefe de disciplina do estudante. Cabia à sua função professoral, acima de tudo, inculcar as normas de passividade, subserviência e docilidade, através da repressão pedagógica, formando a mão-de-obra para um sistema fundado na desigualdade social, a qual acreditava legitimar-se através da desigualdade de rendimento escolar; enfim, onde a escola “escolhia” pedagogicamente os “escolhidos” socialmente.

A transformação do professor de “cão de guarda” em “cão pastor” acompanha a passagem da universidade pretensamente humanista e mandarinesca à universidade tecnocrática, onde os critérios lucrativos da empresa privada, funcionarão para a formação das fornadas de “colarinhos brancos” rumo às usinas, escritórios e dependências ministeriais. É o mito da assessoria, do posto público, que mobiliza o diplomado universitário.

A universidade dominante reproduz-se mesmo através dos “cursos críticos”, em que o juízo professoral aparece hegemônico ante os dominados: os estudantes. Isso se realiza através de um processo que chamarei de “contaminação”. O curso catedrático e dogmático transforma-se num curso magisterial e crítico; a crítica ideológica é feita nos chamados “cursos críticos”, que desempenham a função de um tranqüilizante no meio universitário. Essa apropriação da crítica pelo mandarinato universitário, mantido o sistema de exames, a conformidade ao programa e o controle da docilidade do estudante como alvos básicos, constitui-se numa farsa, numa fábrica de boa consciência e delinqüência acadêmica, daqueles que trocam o poder da razão pela razão do poder. Por isso é necessário realizar a crítica da crítica-crítica, destruir a apropriação da crítica pelo mandarinato acadêmico. Watson demonstrou como, nas ciências humanas, as pesquisas em química molecular estão impregnadas de ideologia. Não se trata de discutir a apropriação burguesa do saber ou não-burguesa do saber, mas sim a destruição do “saber institucionalizado”, do “saber burocratizado” como único “legítimo”. A apropriação universitária (atual) do conhecimento é a concepção capitalista de saber, onde ele se constitui em capital e toma a forma nos hábitos universitários.

A universidade reproduz o modo de produção capitalista dominante não apenas pela ideologia que transmite, mas pelos servos que ela forma. Esse modo de produção determina o tipo de formação através das transformações introduzidas na escola, que coloca em relação mestres e estudantes. O mestre possui um saber inacabado e o aluno uma ignorância transitória, não há saber absoluto nem ignorância absoluta. A relação de saber não institui a diferença entre aluno e professor, a separação entre aluno e professor opera-se através de uma relação de poder simbolizada pelo sistema de exames – “esse batismo burocrático do saber”. O exame é a parte visível da seleção; a invisível é a entrevista, que cumpre as mesmas funções de “exclusão” que possui a empresa em relação ao futuro empregado. Informalmente, docilmente, ela “exclui” o candidato. Para o professor, há o currículo visível, publicações, conferências, traduções e atividade didática, e há o currículo invisível – esse de posse da chamada “informação” que possui espaço na universidade, onde o destino está em aberto e tudo é possível acontecer. É através da nomeação, da cooptação dos mais conformistas (nem sempre os mais produtivos) que a burocracia universitária reproduz o canil de professores. Os valores de submissão e conformismo, a cada instante exibidos pelos comportamentos dos professores, já constituem um sistema ideológico. Mas, em que consiste a delinqüência acadêmica?

A “delinqüência acadêmica” aparece em nossa época longe de seguir os ditames de Kant: “Ouse conhecer.” Se os estudantes procuram conhecer os espíritos audazes de nossa época é fora da universidade que irão encontrá-los. A bem da verdade, raramente a audácia caracterizou a profissão acadêmica. Os filósofos da revolução francesa se autodenominavam de “intelectuais” e não de “acadêmicos”. Isso ocorria porque a universidade mostrara-se hostil ao pensamento crítico avançado. Pela mesma razão, o projeto de Jefferson para a Universidade de Virgínia, concebida para produção de um pensamento independente da Igreja e do Estado (de caráter crítico), fora substituído por uma “universidade que mascarava a usurpação e monopólio  da riqueza, do poder”. Isso levou os estudantes da época a realizarem programas extracurriculares, onde Emerson fazia-se ouvir, já que o obscurantismo da época impedia a entrada nos prédios universitários, pois contrariavam a Igreja, o Estado e as grandes “corporações”, a que alguns intelectuais cooptados pretendem que tenham uma “alma”.[1]

Em nome do “atendimento à comunidade”, “serviço público”, a universidade tende cada vez mais à adaptação indiscriminada a quaisquer pesquisas a serviço dos interesses econômicos hegemônicos; nesse andar, a universidade brasileira oferecerá disciplinas como as existentes na metrópole (EUA): cursos de escotismo, defesa contra incêndios, economia doméstica e datilografia em nível de secretariado, pois já existe isso em Cornell, Wisconson e outros estabelecimentos legitimados. O conflito entre o técnico e o humanismo acaba em compromisso, a universidade brasileira se prepara para ser uma “multiversidade”, isto é, ensina tudo aquilo que o aluno possa pagar. A universidade, vista como prestadora de serviços, corre o risco de enquadrar-se numa “agência de poder”, especialmente após 68, com a Operação Rondon e sua aparente democratização, só nas vagas; funciona como tranqüilidade social. O assistencialismo universitário não resolve o problema da maioria da população brasileira: o problema da terra.

A universidade brasileira, nos últimos 15 anos, preparou técnicos que funcionaram como juízes e promotores, aplicando a Lei de Segurança Nacional, médicos que assinavam atestados de óbito mentirosos, zelosos professores de Educação Moral e Cívica garantindo a hegemonia da ideologia da “segurança nacional” codificada no Pentágono.

O problema significativo a ser colocado é o nível de responsabilidade social dos professores e pesquisadores universitários. A não preocupação com as finalidades sociais do conhecimento produzido se constitui em fator de “delinqüência acadêmica” ou da “traição do intelectual”. Em nome do “serviço à comunidade”, a intelectualidade universitária se tornou cúmplice do genocídio, espionagem, engano e todo tipo de corrupção dominante, quando domina a “razão do Estado” em detrimento do povo. Isso vale para aqueles que aperfeiçoam secretamente armas nucleares (M.I.T.), armas químico-biológicas (Universidade da Califórnia, Berkeley), pensadores inseridos na Rand Corporation, como aqueles que, na qualidade de intelectuais com diploma acreditativo, funcionam na censura, na aplicação da computação com fins repressivos em nosso país. Uma universidade que produz pesquisas ou cursos a quem é apto a pagá-los perde o senso da discriminação ética e da finalidade social de sua produção – é uma multiversidade que se vende no mercado ao primeiro comprador, sem averiguar o fim da encomenda, isso coberto pela ideologia da neutralidade do conhecimento e seu produto.

Já na década de 30, Frederic Lilge[2] acusava a tradição universitária alemã da neutralidade acadêmica de permitir aos universitários alemães a felicidade de um emprego permanente, escondendo a si próprios a futilidade de suas vidas e seu trabalho. Em nome da “segurança nacional”, o intelectual acadêmico despe-se de qualquer responsabilidade social quanto ao seu papel profissional, a política de “panelas” acadêmicas de corredor universitário e a publicação a qualquer preço de um texto qualquer se constituem no metro para medir o sucesso universitário. Nesse universo não cabe uma simples pergunta: o conhecimento a quem e para que serve? Enquanto este encontro de educadores, sob o signo de Paulo Freire, enfatiza a responsabilidade social do educador, da educação não confundida com inculcação, a maioria dos congressos acadêmicos serve de “mercado humano”, onde entram em contato pessoas e cargos acadêmicos a serem preenchidos, parecidos aos encontros entre gerentes de hotel, em que se trocam informações sobre inovações técnicas, revê-se velhos amigos e se estabelecem contatos comerciais.

Estritamente, o mundo da realidade concreta e sempre muito generoso com o acadêmico, pois o título acadêmico torna-se o passaporte que permite o ingresso nos escalões superiores da sociedade: a grande empresa, o grupo militar e a burocracia estatal. O problema da responsabilidade social é escamoteado, a ideologia do acadêmico é não ter nenhuma ideologia, faz fé de apolítico, isto é, serve à política do poder.

Diferentemente, constitui, um legado da filosofia racionalista do século XVIII, uma característica do “verdadeiro” conhecimento o exercício da cidadania do soberano direito de crítica questionando a autoridade, os privilégios e a tradição. O “serviço público” prestado por estes filósofos não consistia na aceitação indiscriminada de qualquer projeto, fosse destinado à melhora de colheitas, ao aperfeiçoamento do genocídio de grupos indígenas a pretexto de “emancipação” ou política de arrocho salarial que converteram o Brasil no detentor do triste “record” de primeiro país no mundo em acidentes de trabalho. Eis que a propaganda pela segurança no trabalho emitida pelas agências oficiais não substitui o aumento salarial.

O pensamento está fundamentalmente ligado à ação. Bergson sublinhava no início do século a necessidade do homem agir como homem de pensamento e pensar como homem de ação. A separação entre “fazer” e “pensar” se constitui numa das doenças que caracterizam a delinqüência acadêmica – a análise e discussão dos problemas relevantes do país constitui um ato político, constitui uma forma de ação, inerente à responsabilidade social do intelectual. A valorização do que seja um homem culto está estritamente vinculada ao seu valor na defesa de valores essenciais de cidadania, ao seu exemplo revelado não pelo seu discurso, mas por sua existência, por sua ação.

Ao analisar a “crise de consciência” dos intelectuais norte-americanos que deram o aval da “escalada” no Vietnã, Horowitz notara que a disposição que eles revelaram no planejamento do genocídio estava vinculada à sua formação, à sua capacidade de discutir meios sem nunca questionar os fins, a transformar os problemas políticos em problemas técnicos, a desprezar a consulta política, preferindo as soluções de gabinete, consumando o que definiríamos como a traição dos intelectuais. É aqui onde a indignidade do intelectual substitui a dignidade da inteligência.

Nenhum preceito ético pode substituir a prática social, a prática pedagógica.

A delinqüência acadêmica se caracteriza pela existência de estruturas de ensino onde os meios (técnicas) se tornam os fins, os fins formativos são esquecidos; a criação do conhecimento e sua reprodução cede lugar ao controle burocrático de sua produção como suprema virtude, onde “administrar” aparece como sinônimo de vigiar e punir – o professor é controlado mediante os critérios visíveis e invisíveis de nomeação; o aluno, mediante os critérios visíveis e invisíveis de exame. Isso resulta em escolas que se constituem em depósitos de alunos, como diria Lima Barreto em “Cemitério de Vivos”.

A alternativa é a criação de canais de participação real de professores, estudantes e funcionários no meio universitário, que oponham-se à esclerose burocrática da instituição.

A autogestão pedagógica teria o mérito de devolver à universidade um sentido de existência, qual seja: a definição de um aprendizado fundado numa motivação participativa e não no decorar determinados “clichês”, repetidos semestralmente nas provas que nada provam, nos exames que nada examina, mesmo porque o aluno sai da universidade com a sensação de estar mais velho, com um dado a mais: o diploma acreditativo que em si perde valor na medida em que perde sua raridade.

A participação discente não constitui um remédio mágico aos males acima apontados, porém a experiência demonstrou que a simples presença discente em colegiados é fator de sua moralização.

* Texto apresentado no I Seminário de Educação Brasileira, realizado em 1978, em Campinas-SP. Publicado em: TRAGTENBERG, M. Sobre Educação, Política e Sindicalismo. São Paulo: Editores Associados; Cortez, 1990, 2ª ed. (Coleção teoria e práticas sociais, vol 1)

[1] Kaysen pretende atribuir uma “alma”à corporação multinacional; esta parece não preocupar-se com tal esforço construtivo do intelectual.

[2] Frederic LILGE, The Abuse of Learning: The Failure of German University. Macmillan, New York, 1948

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